Como já explorado nos últimos artigos publicados nessa coluna1, o novo modelo de cobrança do crédito tributário federal, instituído pela Lei nº 13.606/2018 e regulamentado pela Portaria PGFN nº 33/2018, suscita diferentes opiniões, principalmente no que se refere à averbação pré-executória.
O art. 20-B da Lei nº 10.522/2002 investiu a Procuradoria da Fazenda Nacional no poder de averbar a certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora, tornando-os indisponíveis. O art. 21 da Portaria PGFN nº 33/2018, ao regulamentar o aludido dispositivo legal, em momento algum menciona a expressão indisponibilidade.
Em uma simples leitura dos referidos dispositivos, é possível interpretar que a averbação pré-executória não deve vir acompanhada da automática indisponibilidade patrimonial, porquanto o ato complementar expedido pela PGFN regulamentou o instituto da averbação pré-executória como um simples ato de averbação, cujo objetivo é preservar terceiros e prevenir a fraude à execução.
Contudo, em nossa opinião, a omissão da Portaria PGFN nº 33/2018 quanto à expressão indisponibilidade, seja ela acidental ou intencional, não afasta a eficácia da indisponibilidade patrimonial, que decorre da própria lei, pois, afinal, incumbia à portaria apenas a expedição de atos complementares, não ficando, pois, prejudicado o instrumento da indisponibilidade patrimonial previsto no art. 20-B da Lei nº 10.522/2002.
Dessa forma, o presente texto tem por premissa que a averbação pré-executória – que representa um salutar instrumento contra a fraude à execução – acarretará a indisponibilidade patrimonial, o que ao nosso ver é uma medida que carece de constitucionalidade.
Primeiramente, parece-nos que a lógica que motivou a indisponibilidade aqui tratada decorre da ideia de que o direito de propriedade não é absoluto, de modo que a existência de débitos – muitas vezes precedida de um devido processo legal administrativo – justificaria o afastamento da reserva da jurisdição, o que potencializaria a máxima efetividade da arrecadação.
É bem verdade que em determinadas ocasiões a promoção do interesse público demanda da Administração a relativização do direito de propriedade, de maneira a reduzir a amplitude do devido processo legal judicial previsto no artigo 5º, LIV, da Constituição, segundo o qual “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Trata-se da autoexecutoriedade do ato administrativo, que deriva do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, tal como ocorre, por exemplo, com a pena de perdimento dos bens, que possui caráter de sanção, e com a desapropriação, fundada na necessidade pública, utilidade pública ou interesse social.
Entretanto, diferentemente dos exemplos acima mencionados, não nos parece que o regime jurídico administrativo a que se submete a Administração Pública possa ser utilizado como subterfúgio para justificar a indisponibilidade administrativa de débitos tributários. Na verdade, parece-nos que a indisponibilidade prevista no art. 20-B da Lei nº 13.606/2018 promove o contrário do que se considera interesse público, pois a sociedade não tem o interesse em que a propriedade seja prematuramente atingida por ato unilateral praticado pelo próprio credor, sem o devido “filtro” de legalidade do Estado-Juiz, responsável pelo balanceamento dos interesses em conflito.
Vale lembrar que o título executivo tributário extrajudicial (Certidão de Dívida Ativa) decorre de um ato unilateral do credor, ao contrário do que ocorre na esfera privada, na qual as partes concordam com o surgimento do título. Ainda, os títulos executivos judiciais gerados na esfera privada são precedidos de um devido processo legal judicial, diferentemente do que ocorre no âmbito tributário, no qual não há um devido processo legal efetivo na grande maioria dos casos, o que lança dúvidas sobre o argumento que sustenta a aplicação do princípio da máxima efetividade da execução no âmbito administrativo.
Tal circunstância, aliada ao fato de o sistema tributário brasileiro instigar a litigiosidade, indica que a indisponibilidade patrimonial ora tratada abalará a segurança jurídica, não sendo plausível outorgar ao (já poderoso) Fisco a possibilidade de obter os efeitos que poderiam ser alcançados por meio de instrumentos já existentes, onde há a intervenção do Poder Judiciário, como, por exemplo, a ação cautelar fiscal, que tem por requisito a presença do periculum in mora.
Assim, em nome da eficiência arrecadatória, não é possível tornar indisponível o patrimônio de um suposto devedor, pelo simples fato dele não ter cumprido o prazo de pagamento previsto na Portaria PGFN nº 33/2018, sob pena de a Administração Pública promover – sem a presença do periculum in mora – atos passíveis de serem alcançados na ação cautelar fiscal e na própria execução fiscal. Indo além, é salutar observar o artigo 24, § 2º, da referida Portaria que permite a Procuradoria promover diretamente a indisponibilidade, mediante registro de averbação dos órgãos de registro, nos casos de (i) débitos de elevado valor, conforme definido pelo Ministro da Fazenda, (ii) débitos relacionados a crime contra a ordem tributária, e (iii) indícios de esvaziamento patrimonial.
Ao nosso ver, o termo “diretamente” seria o gatilho para que, sem a prévia notificação do contribuinte, tal como exige o caput do art. 20-B da Lei nº 10.522/2002 o próprio credor se beneficie da indisponibilidade patrimonial para garantir o crédito tributário.
Nesse contexto, a eficiência que a Portaria PGFN nº 33/2018 pretende promover não justifica a execução administrativa dos débitos tributários, não sendo possível retirar do Poder Judiciário o monopólio da jurisdição executiva, que produz na sociedade a segurança jurídica que deve nortear todas as relações jurídicas, principalmente entre Fisco e Contribuinte.